sexta-feira, 23 de abril de 2010

“É arte tudo o que alguém chama de arte”

Urinol/Duchamp

Há alguns detalhes pouco conhecidos sobre esse urinol de parede de Duchamp. Sabe-se que Duchamp intitulou essa peça de Fonte e apresentou-a, de cabeça para baixo, na exposição de 1917, em Nova York, com o pseudônimo: R. Mutt. Duchamp fazia parte da direção daquele salão de vanguarda, mas preferiu apresentar "sua" obra sob pseudônimo. Estava testando o próprio comitê de que fazia parte. O regulamento dizia que não haveria júri nem censura, que qualquer um que pagasse seis dólares poderia expor o que quisesse. Pois o urinol foi rechaçado. Os outros organizadores do salão, mesmo sendo vanguardistas, alegaram que aquilo não era obra de arte.

R. Mutt Duchamp

O fato é que, recusado, tendo ficado encostado em alguma parede, alguém achou que o urinol era um urinol e jogou-o fora. Então, o urinol original desapareceu. Mas naquela recusa, Duchamp e seu marchand viram uma excelente oportunidade de discutir os limites da arte de nosso tempo. E o debate foi fomentado pelo próprio Duchamp e seu marchand Arensberg, que editaram um jornal chamado, sintomaticamente, Blind man (homem cego), decretando não apenas o fim da arte "retiniana" - a pintura, mas defendendo a idéia que, com o urinol que era e não era urinol, o autor "criou um novo pensamento para o objeto". A proposta duchampiana era simples e provocadora: um objeto deslocado de suas funções práticas e colocado num espaço artístico, assumia imediatamente o valor de obra de arte, pois a intencionalidade do criador é que contava. Em 1993, em Nîmes (França), havia uma exposição com outra cópia do urinol de Duchamp, e segundo Nathalie Heinich, o objeto estava tão sacralizado que eles o limpavam e o guardavam com o mesmo carinho que se dedicavam à Guernica. No entanto, um artista chamado Pierre Pinoncelli desencadeou uma performance. Ele era pós-moderno, filhote de Duchamp. Preso a essa metáfora original, aproximou-se do urinol de Duchamp e jorrou ali a sua urina. Isto feito, declarou que ao urinar ali o urinol deixava de ser de Duchamp e passava a ser dele; pois esse é o preceito da arte conceitual, ele apropriou-se do urinol icônico. E justificava seu gesto com sutileza teórica: ao urinar no urinol fez com que o objeto voltasse à sua função original. Seria isto o ápice da carreira simbólica do urinol duchampiano. Mas ele não se satisfez com esse gesto artístico. A seguir, já que havia se apropriado esteticamente do urinol, sendo ele um objeto seu e não mais do governo ou do Duchamp, destruiu-o a marteladas. Desconstruiu Duchamp ao seu modo.

Pierre Pinocelli

Isto virou caso de polícia e o ministro da Justiça francesa entrou na questão alegando que "houve a degradação voluntária do monumento ou objeto de utilidade pública" no valor de 300 mil francos. Aquele artista conceitualista, contra-argumentou que ele, como um autêntico duchampiano, exigia que o urinol não fosse restaurado, nem fosse tratado como objeto vandalizado, mas como nova obra de arte, que a ele agora pertencia. Enfim, nesse círculo vicioso, alegava que havia se apropriado da apropriação.

Mas a estória não pára aí. Em dezembro de 2005, fui ao Beaubourg, em Paris, para ver a grande retrospectiva sobre o dadaísmo. O urinol estava lá. E mal havia retornado ao Brasil, leio nos jornais que aquele mesmo Pinoncelli pegou um martelo e partiu pra cima do urinol outra vez. O urinol ficou danificado. Estima-se que valha hoje US$ 3,6 milhões, ou seja, uns R$ 7 milhões. E aí surge a ironia dos fatos: se o próprio Duchamp comprou vários urinóis, por que não compram um outro - deve custar apenas umas 500 pratas - e botam a assinatura dele? Qual o inconveniente? Pois ele não pegou um trabalho de um "pintor de domingo" e não assinou o nome dele? Ele não fabricou moedas e recibos para pagar dívidas? O fake não faz parte dessa arte?

A melhor maneira de desconstruir Duchamp não é negar ou quebrar o seu urinol, mas tomar o seu discurso, já que ele se quer um artista conceitual que usa a linguagem como arma, e na análise de seu discurso mostrar as suas falácias. E isto é possível desde que tiremos a venda dos olhos, deixemos de ser o "blind man", que ele cultivou, e como o menino da lenda de Andersen digamos, com argumentos teóricos, como e porque o rei está nu.

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